quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Alergia a condições

    Acordei com uma incômoda coceira precedida de uma marca branca e dolorida. Depois de dez anos, alguns mil reais, discussões, momentos descontraídos, boas refeições e viagens, lá estava eu com aquela coceira no dedo anular da mão esquerda. Anular será o nome por ser um dedo nulo, sem importância e mérito? Se assim fosse, marcas não ficariam.
     Bem sei que, quando se diz o “sim”, declara-se o eterno. E pode ser que já não se divida mais a mesma cama nem os roncos noturnos. Pode ser que já não morem sob o mesmo teto nem tenham as mesmas divergências nem procurem encontrar-se no mesmo tempo. Mas, a marca de sol e a marca na vida permanecem.
     Foi após uma overdose de lugares e de pessoas inéditas que o relacionamento deu-se por findo. E finito não eram aquelas lembranças. Pude experimentar, em matrimônio, o suor de muitas criaturas interessantes.
     A sola dos meus sapatos suplicava por não mais ser aberta. Eu não resistia e abria. E também abria a mim. Apetece-me conhecer as pessoas a tal ponto de saber se elas existem de fato, se possuem marcas ou se não se importam com isso.
     Contanto, sempre tive a companhia preferida e então uma angústia de querer pertencê-la. Todos temos. E busquei por diversas vezes aguardá-la sorrateiro num canto do balcão, ou do restaurante. Ou da estrada, ou da vida. Fazia por merecer.
     Nunca fui homem de um corpo, aliás, nunca foi homem de nada. Queria engolir o mundo e encontrar partes perdidas, prestes a caberem. E numa dessas a conheci. Estabelecemos um relacionamento diferente e feliz, mas só a princípio. Queríamos nossas liberdades individuais garantidas, pretendíamos não nos prender um ao outro somente. E então acabamos enjaulados numa caixa de sapatos do centro, sem elevador.
     Demoramos muito tempo para nos conformar com o nosso inconformismo. Quando aceitamos, revimos todos os fatos. E lá estava ela, a escondida e esperta monogamia. E que palavra mais feia, soa repetitiva, lembra monótono ou monotônico. Ao debruçarmo-nos no passado, pudemos notar nossa irracionalidade humana em subestimar nosso instinto animal.
     Sempre mantive relação com várias pessoas distintas, achava necessário trocar assim, dava-me o direito e o luxo de me cercar vez ou outra com doses mais caprichadas de alguém, mas não tinha necessidade de criar condições e entrar nas convenções sociais.
     Era importante para ela que recebesse o anel de preferida. Tudo bem se eu tivesse outras experiências e continuasse peregrinando com minhas vontades em chamas, mas ela precisava garantir-se eminente e superior. É triste que tenha demorado tanto para entender que só seria superior se pertencesse mais a si própria que a mim. E então, a marca branca no dedo ainda me lembra seus trejeitos, mas à ela só lembra minha facilidade de possuí-la e fazê-la uma parte, preferida, mas parte.

     Eu avisei que não saberia conquistá-la diariamente, que era melhor que não se infiltrar demais na minha cadeia, pois eu já era preso demais à minha liberdade.

- empoeirado (2012)

Um comentário: