Sentia-se uma pessoa plena, formada por
sutilezas e pontualidades. Adorava que bordassem com os fios de seus cabelos,
formando penteados brilhantes, e tecessem toques aveludados e macios sobre seu
corpo, para conduzi-la. Era amante de si mesma e traíam-lhe os pensamentos
sorrateiros e soturnos. Tinha uma rotina sofisticada, uma agenda completa de
rabiscos e anotações, recados e versos soltos. Alimentava pela dança uma paixão
silenciosa. Doía ao viver esse encantamento intenso. Entregava-se ao mais
profundo sentimento, ou melhor, aos movimentos.
E tudo quanto era giro, braços ao alto,
gracejo, balanço de cabeça e aceno peculiar fazia com que se envolvesse. Acompanhava desde as mais simples até às mais
complexas ações. Quando de um canto aparecia aquela criatura fisicamente
desenhada, contornada por linhas caprichosamente delimitadas, embora
assimétricas, com tudo quanto é tipo de desenho nos poros, em lugares
cuidadosamente escondidos, conhecidos apenas pelos colegas de camarim, seu
sangue parava de correr, fazendo com que seu coração bombeasse o mais
inconsequente amor, sem ritmo e dose determinados. Descompasso.
E ela, imediatista que era, cedia ao
conforto de seus abraços que a tocavam como se procurando detalhes. E achava.
Conduzidos por aquela música forte e alucinante de suas consciências em
sintonia, encontravam um o ponto fraco do outro. O ponto crucial, o ponto chave
de toda dança, e saltavam. Estremeciam pela força com que haviam de segurar-se
um ao outro, pela tensão que mandavam a todas as pontas. A saliva já densa,
quase seca.
Minutos a fio buscando o pulso firme, a
hora exata, o local certeiro em que as mãos encaixariam em sua cintura,
equilibrada, com ossos pontudos, ou aqueles braços sustentariam suas partes
inferiores, contraídas. Os membros dos dois já correspondiam-se,
simultaneamente, sem precisar de estalos na contagem. Na madeira, suscitavam
inúmeras melodias.
As roupas do figurino tornam-se parte da
coreografia no chão, como se ensaiadas a enrolarem-se por entre as pernas,
enrolando o casal a se olhar e se sentir chegar ao mais fundo de toda concavidade
humana, que é dentro dos olhos. Alcançavam a mais sensível camada, vermelha e
rígida de tanto querer chegar ao fim da música com êxito. Conquistariam paixão
da plateia ou o mais sublime desejo de copiá-los. Tábua por tábua era
contemplada pelas trocas ofegantes e rolamentos. Os estalos vinham depois de
todas as articulações que, sem o devido alongamento, faziam barulho. Depois do
impulso da entrada, do êxtase, amoleciam, frouxos, salgados.
Dançando a quem quisesse assistir,
prosseguiam ao contemporâneo com sons repentinos e movimentos bruscos.
Proporcionavam o harmônico jogo entre corpo e mente, buscando o prazer em
essência. Quase circenses, propunham acrobacias e posições incríveis,
contorciam-se, alongados, e domavam-se um ao outro, com arrepios cálidos e
ardentes, devesse ser o sol de fora, quente tanto quanto eles. Impulsos.
Espasmos sem permissão insistem em aparecer. Apertam-se, unha na carne e dente
na pele, fazendo marca, massagem, apoio.
Um preso aos dedos e membros do outro. Seguros,
fixos, salientes, acostumados. Por tanto tempo trocando passos e passadas,
surgem súbitas carícias de amor latente. Rendem-se ao mais próximo colchão,
relaxando suas partes cansadas e forçadas. Deitavam um sobre o outro,
disfarçadamente, queimando. Molhados, conheciam-se em absoluto. O toque
indicava o caminho. E ambos sabiam onde queriam chegar. Silêncio.
Misturavam-se as peles e os cheiros. Gotas
de adrenalina escorriam entre os cantos. Suor. Invadiam os buracos mais
secretos do lugar, embaçando o espelho, cúmplice e invejoso por copiá-los com
exatidão. Logo as luzes se acenderiam, logo as cortinas se abririam.