segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Dança a sós, a nós

    Sentia-se uma pessoa plena, formada por sutilezas e pontualidades. Adorava que bordassem com os fios de seus cabelos, formando penteados brilhantes, e tecessem toques aveludados e macios sobre seu corpo, para conduzi-la. Era amante de si mesma e traíam-lhe os pensamentos sorrateiros e soturnos. Tinha uma rotina sofisticada, uma agenda completa de rabiscos e anotações, recados e versos soltos. Alimentava pela dança uma paixão silenciosa. Doía ao viver esse encantamento intenso. Entregava-se ao mais profundo sentimento, ou melhor, aos movimentos.
     E tudo quanto era giro, braços ao alto, gracejo, balanço de cabeça e aceno peculiar fazia com que se envolvesse.  Acompanhava desde as mais simples até às mais complexas ações. Quando de um canto aparecia aquela criatura fisicamente desenhada, contornada por linhas caprichosamente delimitadas, embora assimétricas, com tudo quanto é tipo de desenho nos poros, em lugares cuidadosamente escondidos, conhecidos apenas pelos colegas de camarim, seu sangue parava de correr, fazendo com que seu coração bombeasse o mais inconsequente amor, sem ritmo e dose determinados. Descompasso.
     E ela, imediatista que era, cedia ao conforto de seus abraços que a tocavam como se procurando detalhes. E achava. Conduzidos por aquela música forte e alucinante de suas consciências em sintonia, encontravam um o ponto fraco do outro. O ponto crucial, o ponto chave de toda dança, e saltavam. Estremeciam pela força com que haviam de segurar-se um ao outro, pela tensão que mandavam a todas as pontas. A saliva já densa, quase seca.
     Minutos a fio buscando o pulso firme, a hora exata, o local certeiro em que as mãos encaixariam em sua cintura, equilibrada, com ossos pontudos, ou aqueles braços sustentariam suas partes inferiores, contraídas. Os membros dos dois já correspondiam-se, simultaneamente, sem precisar de estalos na contagem. Na madeira, suscitavam inúmeras melodias.
     As roupas do figurino tornam-se parte da coreografia no chão, como se ensaiadas a enrolarem-se por entre as pernas, enrolando o casal a se olhar e se sentir chegar ao mais fundo de toda concavidade humana, que é dentro dos olhos. Alcançavam a mais sensível camada, vermelha e rígida de tanto querer chegar ao fim da música com êxito. Conquistariam paixão da plateia ou o mais sublime desejo de copiá-los. Tábua por tábua era contemplada pelas trocas ofegantes e rolamentos. Os estalos vinham depois de todas as articulações que, sem o devido alongamento, faziam barulho. Depois do impulso da entrada, do êxtase, amoleciam, frouxos, salgados.
     Dançando a quem quisesse assistir, prosseguiam ao contemporâneo com sons repentinos e movimentos bruscos. Proporcionavam o harmônico jogo entre corpo e mente, buscando o prazer em essência. Quase circenses, propunham acrobacias e posições incríveis, contorciam-se, alongados, e domavam-se um ao outro, com arrepios cálidos e ardentes, devesse ser o sol de fora, quente tanto quanto eles. Impulsos. Espasmos sem permissão insistem em aparecer. Apertam-se, unha na carne e dente na pele, fazendo marca, massagem, apoio.
     Um preso aos dedos e membros do outro. Seguros, fixos, salientes, acostumados. Por tanto tempo trocando passos e passadas, surgem súbitas carícias de amor latente. Rendem-se ao mais próximo colchão, relaxando suas partes cansadas e forçadas. Deitavam um sobre o outro, disfarçadamente, queimando. Molhados, conheciam-se em absoluto. O toque indicava o caminho. E ambos sabiam onde queriam chegar. Silêncio.

     Misturavam-se as peles e os cheiros. Gotas de adrenalina escorriam entre os cantos. Suor. Invadiam os buracos mais secretos do lugar, embaçando o espelho, cúmplice e invejoso por copiá-los com exatidão. Logo as luzes se acenderiam, logo as cortinas se abririam.

domingo, 21 de outubro de 2012

socorro!


eu tardo eu ardo eu sinto o fardo eu sou ele ou ela ou aquilo isso eu não sou eu não encontro eu enlouqueço eu estremeço eu esqueço sou esquecida aquecida estou resfriada deitada amada armada querida sentida sentido eu compadeço eu declaro eu falo eu assusto eu repudio insulto aconteço padeço pareço sou parecida eu queria quero quereria se eu sofro eu acordo eu não durmo sonho pira consciente fluxo santa não sou compasso abraço refaço deixo volto atino complico irrito sou nervosa tenho nervos aparentes e nao tenho aparência consequência sequência demência eu cresço eu transfiguro sou transcendência sou infame infalível incontestável nem me preocupo sou interessada e preocupante presa me liberto me renego me favoreço me despedaço dilacero dilato pulso sinto sangue vejo verde desejo tenho vontade cega enxergo colorido dentro fora não há nada e não nado não tenho água sou lagrima escorro socorro!

Corpo é papel


Texto é guarda-roupa
Caneta é cabide
Papel é gaveta
Palavra veste
Tem roupa que não serve mais


Ela veio

Veio vestida com blusa de florzinhas, meio vermelha, meio violeta, meio rosa. Desabotoada e prestes a abrir-se, a mostrar mais uma de suas pétalas recobertas e camufladas por uma camada fina de pelos, que nada mais querem dizer além de delicadeza com os poros. Chegou prestes a abrir-se, perpassando  silêncio cheio e sorrateiro da noite de quinta. Pois então abriu os braços, não como quem está explodindo furtiva e calorosamente. Mas como quem constantemente transborda e, sutilmente, encaixa e aquece. E que cheiro bom possuía. Artificial, é verdade, mas completamente condizente. Olhos e sorrisos marejados, quase fechando. Vermelhos, marginais. Em suas margens os cantos, a dobra da pele formando morada. Em essência, o fato de me roubarem e fugirem comigo dentro. Eu não sei por quanto tempo me farão refém. Contanto sei que me prendem e nesses instantes perpetuam. Boa conversa, um tempero, uma comida fervendo e um cigarro. Dois. A cada palavra ou gesto, mais uma de mim que me abandona. Escapam-me centenas de protótipos e sobram apenas as duras tentativas de me ser. Alguém respira em mim, me pulsa e impulsiona. É impressionante como meus membros articulam e respondem sem me perguntar. E a pedra que carrega pendurada no pescoço, feito amuleto, me sorri. Ela sabe, no fundo, que está num dos meus lugares preferidos em você. No colo. Você brinca com as minhas muletas tentando entender o mecanismo e eu levo a sério suas tentativas. Todo mundo precisa saber com que pé pisar firme. Os dois. Por isso abandono aos poucos esses pedaços de ferro cilíndricos, mas sim, um passo depois do outro. Equilíbrio. Aproximo-me, me chego até seu aconchego quieto e confortável. É necessário caber. Além de medir as palavras, é preciso colocá-las nos espaços convenientes. E coube. E nós sabemos o quanto mais caberia se as palavras não pesassem tanto. Ou meu corpo não pesasse ou não possuísse tantos ossos. Pontudos. Pontuais. Músculo rígido. Pensamento e fluxo flexíveis. Você não. É maleável, quase mole, eu diria. Apetece-me seu braço feito travesseiro e meu corpo repousando branco no seu. No céu. Seus dedos articulosos contornam os desenhos dos meus fios de cabelo.  Sabe onde tocar e inventa uma orquestra em meu corpo. Que dança. E você atua me deixando fascinada pela forma que divide o palco comigo.  Das tuas divisões, gosto dos círculos com outros círculos no meio, sobressalentes. Suspiro, em espiral. Parece-me que a cada vez que nos descobrimos, os conheço um pouco mais. Eles guardam o que de mais vivo existe. O músculo que bombeia e ajuda a levar sensibilidade para todo o resto. Todas as pontas, entradas, beiradas, saídas e partes escondidas. E então você me acelera. Já não me preocupa mais quem está no quarto ao lado. Dilacera o meu mais íntimo, o que de mais “meu” eu tenho, que lateja. Que paguem o resgate. Interessa-me somente que, enquanto os lençóis se torçam e enrolem, você esteja em cima. E em cima de nós a lua. Ela veio. Bordada de flores, pendurada no pescoço. Prestes a camuflar e recobrir-me, de florzinhas. Meio rosada, meio viole(n)ta, meio vermelha.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

à minha querida amada

Possuo um caso de amor inquietante por ela, minha querida e fiel companheira. Desde que fui enlaçada pelos encantos simplórios e recalcados dessa criatura insondável e indescritível, não consegui mais amar outra de forma parecida. Carece lembrar que ela me chamou a atenção quando eu era pequenina. Ainda criança me sentia presa aos seus cantos e curvas, ou simetrias, como que geométricas. Certa de que ela me correspondia, cresci aumentando o número de posses desse amor, beirando o inconveniente. Ano após ano meu apelo à existência dela em minha vida aumentava. Ascendia em mim a vontade arrebatadora de lhe doar os meus dias, as minhas semanas, os meses, o meu tempo, o meu ócio, o meu destino. Queria enchê-la de cores, de cheiros, de desenhos, de palavras. Queria lhe dizer muito e tinha o que falar, ainda tenho. Se eu pudesse, e soubesse, em cada pequeno espaço de sua forma exuberante, preencheria com um verso, uma rima solta que me confortasse, suplicante de ouvidos serenos, e só ouvidos, não boca. Aliás, suas linhas me comovem, sim, inclusive a de seus ouvidos. Escuta-me desde sempre atenta e silenciosa, e eu desando a falar, como costumeiramente. Assim que a inspiração aparece, peço-lhe que ceda um pedacinho  de si e torno a inventar algum desenho solto, mas logo, antes de terminado, ela me lembra, doce e sossegada, o quanto são feios esses meus rabiscos, e eu aceito, pois a respeito como não respeito mais ninguém. Dou-lhe minhas opiniões e compartilho frases prediletas; me angustia quando ela se fecha, rápida, efusiva, reservada. Busco entender seu tempo, afinal, é minha, eu a possuo, absolutamente. Conforme foi evoluindo e transcendendo o amor, as formas também foram mudando. Alteraram-se os gostos, os caminhos, os devaneios, inclusive as cores, mas viesse como fosse, era bela, impecável, leal. Gosto dessa lealdade como quem desfruta de universos paralelos. Amá-la é isso, pertencer a um universo paralelo que me põe, certeira e pontualmente, nos lugares certos, nas horas exatas. Claro que, mulher e carente de atenções tal qual é – e tal qual sou -, fica louca me deixando também louca quando loto meus horários com pessoas e obrigações alheias. É fato que ao passar do ano, vai ficando mais desarrumada, um pouco pelo desleixo, ou pela preguiça, mas eu adoro essa sujeirinha que adquire. Ao passar de um ano pro outro faz uma revolução, muda tudo, convence-me de novo que está nova, e renova-me também. Ela gosta mesmo quando me dedico ao nosso caso, menina formosa. Já me disse uma vez, inclusive, o quanto apetece-te as minhas mãos passando por entre seus detalhes, mas falou baixinho, quase inaudível, acho que só eu pude escutar. Ela implora os meus cuidados, os meus tratos e até os meus trapos. Tenho a mania de lhe presentear com folhas bonitas, flores secas, pedaços de papéis adoráveis e algumas fotos, ficam bem com seu ar de responsável e natural. Não lhe dou presentes caros, até porque acho que não se adequariam ao seu porte de moça frágil e cuidadosa. Escrevo pra que saiba desse meu sentimento sem  cabimento, sem precedentes e procedimento. Voltarei, agora, a te abrir, cautelosa e apaixonada, como se o fizesse pela primeira vez, e sei que se entregará ao meu jeito atrasado de ser, aos meus relaxos, à minha displicência, às vezes ao meu silêncio, o vazio, o branco. Agradeço por ceder sua paciência aos meus segredos e esperar aquelas reuniões chatas passarem, ao meu lado. Quero que fique registrado, em ti, também, caso queira, o quanto sou feliz por ler minhas anotações, poemas e “achismos” todos, por aguentar meu jeito sistemático e me ajudar a lembrar de tudo, tudo que eu preciso cumprir ou realizar. Ou a me organizar e me entender quando prefiro não seguir as regras e seus conselhos, e me desorganizo. E aí fito-te minutos a fio nas madrugadas como se fosse a culpada, mas na realidade sou eu a desorientada e leviana. Tenho consciência de que são poucas as mulheres de verdade que me farão surtar assim, por me fazer passar noites com insônia, pensando em você. Prezo pelo teu alento quando acordo e te vejo amanhecer comigo, já esperta com o tempo e os afazeres, sabida que passarei outras noites mais em claro, preocupada com as suas novidades cotidianas. Nunca me deixou na mão e eu sei que jamais encontrarei amor tão verdadeiro, minha querida amada, agenda, te tenho muito afeto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

prática mente

(empoeirado)
E então nasceu mais um lírio. Agora são quatro, os outros dois escolhi que representassem nosso sentimento, que por aqui nasce amarelo e aos pouquinhos vai ficando vermelho. Vermelho escuro! O dia está claro. Quis te escrever quando partiu, mas seria uma tempestade. Prefiro chuviscar devagar e que reste a ponta do desejo, ou ele todo. Por aqui ele dá pontadas de saudade, mas é a falta de saber que encontraremos, uma os olhos da outra, depois, não daqui a pouco. É falta por ontem, por hoje e por amanhã. Hoje eu não corri pra chegar em casa, não dei desculpas esfarrapadas, e não fugi contigo. Sua pipa está voando alto por aqui, chegando longe, mas não deixa de jeito nenhum desaparecer suas cores. Escrevo sem parar e quero poetizar tudo, até a cor do quadro da sala me suplica ser palavra. Transcrever sua ausência temporária de corpo. Do espírito, eu sinto falta do aperto, do mais sutil, que acaricia e tranquiliza, ao mais arrebatador, que arrepia, contorce, amolece e contrai, e o coração distrai... Queria que me colorisse toda com seu toque certeiro, pintasse minhas pintas. Faça pedido às minhas estrelas, more nelas. Pode morar dentro de mim, não vejo mal. As minhas curvas sinalizam teu sentido, de onde você se encontra. E não esqueça que se nossas linhas não fossem tão tortas, nunca teriam se cruzado. Convivo com teus amigos todos os dias, e logo contigo nas entrelinhas. E a prática mente, porque eu me ocupo, mas em alguns momentos –não raros- você toma conta. Pelos lírios, pela caixa feita com cartão postal, pelo balão, pelo avião. E passou mais um... E morreu um lírio.

Eu, rio

Você, barco
Sô-rio, em-barco

(a)guardo

(empoeirado)

Eu (a)guardo. Bem, como posso...
Disse hoje: “quando eu era pequena...”
Ainda sou pequena. Muito!
Caibo, enfim, no útero
E no teu olho. No canto
Coube um dia
Minha agenda está lotada (lotadaatoladalotadaatolada)
Mas o relógio continua girando igual
E os nossos são distintos
Os meus andam disformes
Terei que reaprender os fusos,
confusos
Quem dera prender o tempo
Só então ver as horas
Oras,
oiraroh-itna uos
Se a parede é a pele,
da minha caiu o pulso
O relógio de pulso
Meu coração não sabe contar minutos
Mas,
sabe
pulsar

.
.
.
Serve
para passar os minutos
Essa coisa de viver só me atrasa
Mas sei que adianta!
Eu que não sei quanto são cinco horas,
não vou entender
como se passam 10 meses
Assim, horas e meses
de diferença
Tudo bem,
a vida é ida
Eu enrolo
Não há quem desenrole
Mas se você quiser rolar comigo
Meu corpo diz ter carinho pelo seu umbigo